Muitos brasileiros vivem em imóveis que ocupam há anos, cuidando como se fossem seus, mas sem possuir a documentação oficial em seu nome. Nesse cenário, a usucapião surge como uma poderosa ferramenta para adquirir a propriedade definitiva. Com a desburocratização trazida pelo Código de Processo Civil de 2015, a usucapião extrajudicial, realizada diretamente no cartório, tornou-se o caminho mais rápido e eficiente.
No entanto, uma dúvida muito comum e complexa atormenta inúmeros possuidores: é possível fazer a usucapião extrajudicial em imóveis com construções irregulares? Ou seja, aquela casa que foi ampliada, o segundo andar que foi construído ou a edícula nos fundos que não foram “averbados” na matrícula.
A resposta, para o alívio de muitos, é sim, é possível. Contudo, o caminho exige atenção a detalhes técnicos e jurídicos específicos. Este artigo é um guia completo para você entender como regularizar a propriedade do seu imóvel, mesmo que a construção presente nele não esteja formalmente regularizada na prefeitura ou no cartório.
Entendendo a Base: O que é Usucapião e Construção Irregular?
Antes de mais nada, é crucial entender os dois conceitos centrais deste tema.
A usucapião é o direito de adquirir a propriedade de um bem (móvel ou imóvel) pelo uso contínuo e pacífico durante um determinado tempo, desde que o possuidor aja como se fosse o verdadeiro dono (animus domini). Em outras palavras, a lei transforma um fato (a posse prolongada) em um direito (a propriedade).
Por outro lado, uma construção irregular (ou não averbada) é qualquer edificação, reforma ou ampliação realizada em um terreno que não foi comunicada e aprovada pela prefeitura e, consequentemente, não consta na matrícula do imóvel no Cartório de Registro de Imóveis. Essa irregularidade é extremamente comum no Brasil e pode gerar uma série de dores de cabeça, como a impossibilidade de vender o imóvel por financiamento bancário.
A grande questão é que, para a usucapião extrajudicial, o Cartório de Registro de Imóveis é bastante rigoroso com a descrição do imóvel. E é aí que a irregularidade da construção pode se tornar um obstáculo.
O Desafio: A Necessária Descrição do Imóvel na Usucapião
O procedimento de usucapião extrajudicial exige, entre outros documentos, uma planta e memorial descritivo do imóvel, assinados por um profissional habilitado (engenheiro ou arquiteto) e pelos titulares de direitos dos imóveis vizinhos.
Esse documento deve descrever com precisão as características do imóvel, incluindo, evidentemente, a área construída. Se a construção existente no terreno não está regularizada, cria-se um conflito entre a realidade física (o que o engenheiro vê e mede) e a realidade registral (o que consta na matrícula, que muitas vezes aponta apenas um terreno vazio).
Portanto, o desafio é conciliar essas duas realidades para que o Oficial do Cartório se sinta seguro para registrar a nova propriedade em seu nome, já incluindo a construção.
O Papel do Registrador de Imóveis e da Prefeitura
É fundamental entender que a usucapião serve para declarar a propriedade da terra (do terreno) e de tudo que está sobre ela (as acessões, como as construções). O foco do procedimento no cartório é a transferência da titularidade.
A regularidade administrativa da obra perante a prefeitura é uma questão distinta, de natureza urbanística e tributária. Dessa forma, um imóvel com construção irregular não impede, por si só, a usucapião extrajudicial. O registrador não pode exigir o “Habite-se” (documento municipal que atesta a regularidade da obra) como condição para processar a usucapião.
Contudo, o registrador precisa que a nova matrícula a ser aberta reflita a realidade do imóvel. Para isso, a solução passa por uma regularização conjunta.
Passo a Passo: Como Proceder com a Usucapião do Imóvel com Construção Irregular
A estratégia mais eficaz envolve um trabalho conjunto entre a assessoria jurídica especializada e um profissional de engenharia ou arquitetura.
- Análise Jurídica Preliminar: O primeiro passo é consultar um advogado especialista em direito imobiliário. Ele irá analisar se você preenche todos os requisitos da usucapião (tempo de posse, posse mansa e pacífica, agir como dono, etc.) e qual a modalidade mais adequada para o seu caso.
- Levantamento Topográfico e Planta Atualizada: Um engenheiro ou arquiteto deve ser contratado para fazer o levantamento completo do imóvel. Ele irá medir o terreno e a área construída, elaborando a planta e o memorial descritivo que refletem a realidade atual do imóvel.
- Regularização na Prefeitura (Quando Necessário e Possível): Embora não seja um pré-requisito obrigatório para o cartório em todos os casos, tentar a regularização da obra na prefeitura é, frequentemente, o caminho mais seguro e que evita problemas futuros. O advogado e o engenheiro podem verificar se o seu município possui leis de anistia (como a “anistia de imóveis”) ou outros procedimentos simplificados para regularizar construções antigas. Obter o Habite-se e a CND do INSS da obra (se aplicável) resolve a questão administrativa.
- Abertura do Procedimento no Cartório de Notas: Com toda a documentação reunida, o advogado dará início ao procedimento no Cartório de Notas, lavrando uma Ata Notarial. Este documento, feito pelo tabelião, atestará o tempo de posse e outras circunstâncias, sendo uma peça-chave para o processo.
- Requerimento no Cartório de Registro de Imóveis: Em seguida, o advogado apresentará o requerimento de usucapião ao Cartório de Registro de Imóveis competente, juntando a Ata Notarial, a planta, os documentos pessoais, as certidões negativas e as notificações dos confrontantes, do antigo proprietário e das Fazendas Públicas.
- Análise e Registro: O Oficial do Registro de Imóveis analisará todo o processo. Estando tudo em ordem, ele procederá com o registro, abrindo uma nova matrícula para o imóvel em seu nome, já descrevendo a construção existente.
A Importância da Assessoria Jurídica Especializada
Tentar navegar pelo processo de usucapião extrajudicial de um imóvel com construção irregular sem o suporte de um advogado especialista é um risco enorme. A ausência de um documento, uma notificação feita de forma errada ou a incapacidade de argumentar juridicamente com o oficial do cartório podem levar à recusa do pedido, causando perda de tempo e dinheiro.
Um advogado com experiência na área imobiliária saberá como:
- Diagnosticar corretamente a situação do imóvel e da posse.
- Orientar sobre a produção de provas robustas.
- Coordenar o trabalho com o profissional de engenharia.
- Dialogar com o tabelião e o registrador, superando eventuais exigências e obstáculos.
- Garantir que, ao final, a matrícula do seu imóvel reflita a realidade, valorizando seu patrimônio e garantindo sua segurança jurídica.
Em suma, a construção irregular não é um beco sem saída para quem sonha em ter o documento de propriedade do seu lar. Com a estratégia correta e a orientação profissional adequada, é perfeitamente possível utilizar a usucapião extrajudicial para regularizar a situação de uma vez por todas.