A globalização encurtou distâncias e tornou as relações familiares e patrimoniais internacionais cada vez mais comuns. Nesse cenário, receber uma herança que inclui bens localizados no exterior, como um imóvel, é uma realidade para muitos brasileiros. Contudo, essa situação traz consigo uma série de dúvidas, especialmente no que diz respeito à tributação. Uma das questões centrais é a incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) sobre esses bens.
Compreender como o ITCMD se aplica a imóveis herdados fora do Brasil é fundamental para evitar problemas fiscais e garantir a regularidade do patrimônio. Além disso, a complexidade da legislação tributária brasileira, somada às particularidades das leis estrangeiras, torna o tema um desafio. Este artigo tem como objetivo desmistificar essa questão, explicando o que é o ITCMD, como ele funciona e, principalmente, qual a sua situação atual em relação aos bens herdados no exterior.
O que é o ITCMD?
Em primeiro lugar, é essencial entender a natureza do ITCMD. Trata-se de um imposto de competência estadual e do Distrito Federal, previsto na Constituição Federal. Como o próprio nome sugere, ele incide sobre a transmissão de quaisquer bens ou direitos por dois motivos principais:
- Causa Mortis: Quando ocorre a transferência de patrimônio em decorrência do falecimento de uma pessoa (herança ou legado).
- Doação: Quando há a transferência gratuita de bens ou direitos de uma pessoa para outra, em vida.
Assim sendo, sempre que alguém recebe uma herança ou uma doação no Brasil, via de regra, estará sujeito ao pagamento do ITCMD ao estado competente. As alíquotas e as regras específicas de isenção variam significativamente de um estado para outro, respeitando um teto máximo definido por resolução do Senado Federal.
A Regra Geral de Incidência do ITCMD
Para bens localizados no Brasil, a regra de competência para a cobrança do ITCMD é relativamente clara:
- Bens Imóveis: O imposto é devido ao estado onde o imóvel está situado. Por exemplo, se você herda um apartamento no Rio de Janeiro, o ITCMD será pago ao estado do Rio de Janeiro.
- Bens Móveis, Títulos e Créditos: A competência depende do local onde se processa o inventário ou arrolamento (no caso de herança) ou do domicílio do doador (no caso de doação).
Essa lógica funciona bem para o patrimônio dentro das fronteiras nacionais. No entanto, a situação se complica consideravelmente quando os bens herdados estão localizados fora do Brasil.
O Desafio: ITCMD sobre Bens Herdados no Exterior
A grande questão que surge é: o Brasil pode cobrar ITCMD sobre um imóvel localizado em outro país, herdado por um residente fiscal brasileiro? A resposta para essa pergunta passou por importantes reviravoltas jurídicas nos últimos anos.
A Constituição Federal, em seu artigo 155, § 1º, inciso III, estabelece as regras gerais de competência para o ITCMD em situações internacionais. Ela determina que a competência para instituir o imposto sobre bens no exterior dependeria de Lei Complementar federal nos seguintes casos:
- a) Se o doador tiver domicílio ou residência no exterior;
- b) Se o de cujus (falecido) possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior.
O ponto crucial aqui é a necessidade de uma Lei Complementar específica para regulamentar essa cobrança. Por muitos anos, diversos estados brasileiros instituíram leis próprias para cobrar o ITCMD sobre heranças e doações de bens situados no exterior, mesmo na ausência dessa lei federal. Isso gerou uma enorme insegurança jurídica e inúmeras disputas judiciais.
A Decisão do STF e o Cenário Atual – Tema 825
Essa controvérsia chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), que, em 2021, julgou o Recurso Extraordinário (RE) 851.108, estabelecendo a tese do Tema 825 de Repercussão Geral. A decisão do STF foi clara: os estados e o Distrito Federal não podem instituir o ITCMD nas hipóteses referidas no artigo 155, § 1º, III, da Constituição Federal sem a edição da Lei Complementar exigida pelo próprio texto constitucional.
Na prática, isso significa que, atualmente, os estados brasileiros estão impedidos de cobrar o ITCMD sobre:
- Doações de bens localizados no exterior, quando o doador tem domicílio fora do Brasil, mesmo que o donatário (quem recebe) resida no Brasil.
- Heranças de bens localizados no exterior, quando o falecido era residente ou domiciliado no exterior, ou teve seu inventário processado fora do Brasil, mesmo que o herdeiro resida no Brasil.
Portanto, se você herdou um imóvel localizado fora do Brasil de uma pessoa que residia no exterior no momento do falecimento, a regra atual, conforme entendimento do STF, é que não incide o ITCMD brasileiro sobre essa transmissão, pela ausência da Lei Complementar federal regulamentadora.
Implicações Práticas para Imóveis Herdados Fora do Brasil
Essa decisão do STF trouxe um alívio temporário para muitos herdeiros e donatários, mas também exige atenção a alguns pontos práticos importantes:
- Situação Transitória: É fundamental entender que essa “não incidência” é decorrente da omissão do legislador federal em criar a Lei Complementar. O Congresso Nacional pode, a qualquer momento, aprovar essa lei, e a partir de sua vigência, a cobrança do ITCMD sobre bens no exterior poderá ser retomada pelos estados, seguindo as novas regras. Projetos de lei nesse sentido já tramitam no Congresso.
- Inventário e Declarações: Mesmo que o ITCMD não seja devido no Brasil no momento, o processo de inventário pode precisar ser realizado ou homologado no Brasil, especialmente se houver outros bens no país ou se o herdeiro for residente fiscal aqui. Além disso, o imóvel herdado no exterior deve ser devidamente informado na Declaração de Imposto de Renda Pessoa Física (DIRPF) e, dependendo do valor total dos bens no exterior, na Declaração de Capitais Brasileiros no Exterior (CBE) do Banco Central. A correta declaração desses bens é essencial para evitar problemas futuros com a Receita Federal.
- Tributação no País do Imóvel: É crucial lembrar que a não incidência do ITCMD no Brasil não isenta o herdeiro de possíveis impostos sobre herança no país onde o imóvel está localizado. Cada país tem suas próprias leis de sucessão e tributação. Portanto, é indispensável verificar a legislação local e cumprir as obrigações fiscais no exterior, o que pode exigir a contratação de assessoria jurídica local.
- Dupla Tributação: Caso a Lei Complementar seja aprovada no Brasil, poderá surgir o risco de dupla tributação – pagar imposto sobre herança tanto no país do imóvel quanto no Brasil. A existência de acordos para evitar a dupla tributação entre o Brasil e o país em questão deve ser verificada, embora muitos desses acordos não cubram especificamente impostos sobre herança e doação.
A Importância da Assessoria Jurídica Especializada
Como vimos, lidar com imóveis herdados fora do Brasil envolve navegar por um cenário jurídico complexo e em constante evolução. A interpretação da legislação tributária, o entendimento das decisões judiciais como a do Tema 825 do STF, o cumprimento das obrigações declaratórias no Brasil e a atenção às leis estrangeiras são tarefas que demandam conhecimento especializado.
Tentar resolver essas questões sem o devido suporte pode levar a erros custosos, como o pagamento indevido de impostos, a omissão de declarações obrigatórias ou o enfrentamento de litígios fiscais. Além disso, um planejamento sucessório internacional bem estruturado pode ajudar a mitigar cargas tributárias futuras e facilitar a transmissão do patrimônio.
Um advogado especialista em direito sucessório e tributário internacional poderá analisar o seu caso específico, considerando:
- O local do imóvel herdado;
- O domicílio do falecido e do herdeiro;
- A existência de outros bens no Brasil e no exterior;
- A legislação do país estrangeiro;
- As implicações da decisão do STF e a possibilidade de futuras mudanças legislativas.
Com base nessa análise, será possível traçar a melhor estratégia para regularizar a situação, cumprir todas as obrigações fiscais de forma correta e eficiente, e proteger o seu patrimônio.
A questão do ITCMD sobre imóveis herdados fora do Brasil é um exemplo claro da complexidade que envolve o patrimônio internacional. Graças à decisão do STF no Tema 825, atualmente não há incidência do imposto brasileiro nessas situações específicas, devido à ausência de uma Lei Complementar federal. No entanto, esta é uma condição que pode mudar.
É essencial que herdeiros nessa situação estejam cientes da necessidade de cumprir as obrigações declaratórias no Brasil e, principalmente, de verificar e cumprir as leis tributárias e sucessórias do país onde o imóvel está localizado.
Diante das nuances legais e da possibilidade de mudanças futuras, buscar assessoria jurídica especializada não é apenas recomendável, é uma medida prudente para garantir a tranquilidade e a segurança jurídica na gestão do patrimônio herdado no exterior.