A popularização do home office transformou profundamente as relações de trabalho no Brasil. Se, por um lado, trouxe flexibilidade e economia de tempo para muitos, por outro, levantou uma série de dúvidas sobre os direitos e deveres de empregados e empregadores. Uma das perguntas mais frequentes e que gera bastante controvérsia é: a empresa pode cortar o vale-alimentação (ou vale-refeição) quando o funcionário está em home office? A resposta, como quase tudo no Direito do Trabalho, não é um simples “sim” ou “não”, mas envolve nuances importantes que dependem da origem e da natureza desse benefício.
A Natureza do Vale-Alimentação e Vale-Refeição
Para entender a questão, primeiro precisamos diferenciar e compreender a finalidade do vale-alimentação (VA) e do vale-refeição (VR). Ambos são benefícios que visam auxiliar o trabalhador em suas despesas com alimentação.
- Vale-Refeição (VR): Geralmente destinado à compra de refeições prontas em restaurantes, lanchonetes e similares durante o horário de trabalho. O objetivo é cobrir o custo da alimentação diária que o empregado teria fora de casa.
- Vale-Alimentação (VA): Destinado à compra de produtos alimentícios em supermercados, mercearias e açougues para consumo em casa. O foco é complementar a cesta básica e auxiliar na alimentação familiar.
Ambos os benefícios podem ser concedidos por meio de cartões específicos ou, em alguns casos mais raros, em dinheiro. A forma como são concedidos e sua previsão legal ou contratual são cruciais para definir a possibilidade de corte ou manutenção no regime de home office.
A CLT e a Ausência de Obrigatoriedade Legal
É fundamental destacar que, pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a empresa não é obrigada a conceder vale-alimentação ou vale-refeição. Ou seja, a CLT não impõe essa obrigação ao empregador como um direito irrestrito do trabalhador, como são o salário, férias ou 13º.
Então, de onde vêm esses benefícios? Geralmente, eles surgem de três principais fontes:
- Acordo ou Convenção Coletiva de Trabalho (ACT/CCT): Esta é a fonte mais comum. Sindicatos e empresas/categorias negociam e incluem a obrigatoriedade do benefício em seus instrumentos coletivos. Quando previsto em ACT ou CCT, o cumprimento é obrigatório para as empresas abrangidas.
- Contrato de Trabalho: A empresa pode, por livre e espontânea vontade, incluir a concessão do vale-alimentação/refeição no contrato individual de trabalho do empregado.
- Regulamento Interno da Empresa ou Mera Liberalidade: A empresa pode ter um regulamento interno que prevê o benefício ou, simplesmente, concede-o por liberalidade, sem que haja uma obrigação legal ou contratual expressa.
A forma como o benefício foi instituído é o ponto-chave para determinar se ele pode ou não ser suprimido ou alterado no regime de home office.
Home Office e a Manutenção dos Benefícios
A Lei nº 13.467/2017 (Reforma Trabalhista) incluiu na CLT os artigos 75-A a 75-E, que tratam do teletrabalho. O artigo 75-C estabelece que a mudança do regime presencial para o teletrabalho deve ser feita por aditivo contratual. No entanto, a lei não faz menção específica aos benefícios como vale-alimentação ou vale-refeição.
É aqui que entra a interpretação jurídica e a jurisprudência (decisões dos tribunais):
1. Benefício Previsto em Acordo ou Convenção Coletiva
Se o vale-alimentação ou vale-refeição é uma obrigação imposta por Acordo ou Convenção Coletiva de Trabalho (ACT/CCT), a empresa não pode simplesmente cortar o benefício quando o empregado migra para o home office.
Isso porque os ACTs e CCTs têm força de lei entre as partes e, geralmente, não fazem distinção entre trabalho presencial e teletrabalho para a concessão desses benefícios. Se o instrumento coletivo não prevê expressamente a supressão do vale-alimentação/refeição para quem trabalha remotamente, entende-se que o direito se mantém. Qualquer alteração nesse sentido precisaria de uma nova negociação coletiva.
2. Benefício Previsto em Contrato Individual de Trabalho ou Regulamento Interno
Se o benefício foi concedido por previsão no contrato individual de trabalho ou em um regulamento interno da empresa, a situação é um pouco mais complexa, mas a tendência ainda é pela manutenção.
Isso se baseia no princípio da inalterabilidade contratual lesiva, previsto no artigo 468 da CLT. Esse princípio impede que o empregador altere unilateralmente as condições do contrato de trabalho de forma prejudicial ao empregado. A supressão de um benefício que já era pago regularmente e que o empregado já contava para seu orçamento pode ser considerada uma alteração lesiva.
Mesmo no home office, o empregado continua tendo despesas com alimentação. Argumentar que ele está em casa e, portanto, não precisa de vale-refeição, ignora o fato de que ele ainda precisa se alimentar durante a jornada de trabalho, e o custo dessa alimentação continua existindo, apenas muda o local da refeição. Para muitos, o VR ou VA complementa o orçamento doméstico de forma significativa.
3. Benefício Concedido por Mera Liberalidade
Se a empresa concedia o vale-alimentação/refeição por mera liberalidade, sem qualquer previsão em lei, ACT/CCT, contrato ou regulamento, a situação é a mais delicada para o empregado.
Nesses casos, a jurisprudência tem sido mais dividida. Alguns entendem que, por ser uma liberalidade, a empresa poderia sim, em tese, revogar o benefício, desde que de forma não discriminatória. No entanto, se o benefício era pago de forma habitual e gerou uma expectativa de direito, e se sua supressão representar uma redução salarial indireta ou um prejuízo significativo para o empregado, ainda assim pode ser questionada judicialmente com base no princípio da irredutibilidade salarial e da vedação à alteração contratual lesiva.
O Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT)
Muitas empresas aderem ao Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), um programa do governo federal que oferece incentivos fiscais para empresas que fornecem benefícios de alimentação aos seus empregados.
A participação no PAT não altera a natureza do benefício em relação à sua obrigatoriedade. Se a empresa adere ao PAT e concede o benefício, ele continua sendo regido pelas mesmas regras (ACT/CCT, contrato, liberalidade). A adesão ao PAT, por si só, não autoriza o corte do benefício no home office.
Recentemente, a Lei nº 14.442/2022 trouxe algumas alterações importantes para o PAT, visando coibir desvios na finalidade dos vales. Contudo, essas alterações não tratam especificamente da manutenção ou corte do benefício em casos de home office, focando mais na sua utilização exclusiva para alimentação.
O Que Dizem os Tribunais?
A jurisprudência (decisões reiteradas dos tribunais) tem sido majoritariamente favorável à manutenção do vale-alimentação/refeição para trabalhadores em home office, especialmente quando o benefício já era concedido antes da transição para o trabalho remoto ou quando previsto em instrumento coletivo.
Os tribunais tendem a considerar que a finalidade do benefício (auxílio à alimentação) permanece válida, independentemente do local de trabalho. Argumentam que a alteração do regime de trabalho não justifica a supressão de um direito já adquirido ou de uma condição mais benéfica. A lógica é que o empregado continua tendo custos com alimentação em sua jornada de trabalho, mesmo estando em casa.
Recomendações para Empregados e Empregadores
Para o Empregado:
- Verifique seu contrato de trabalho e o ACT/CCT: É o primeiro passo para saber se o benefício é um direito garantido.
- Documente: Guarde comprovantes de recebimento do vale-alimentação/refeição e qualquer comunicação da empresa sobre o tema.
- Comunique-se: Se a empresa cortar o benefício, procure a área de RH para entender o motivo e tente negociar.
- Busque orientação jurídica: Se a empresa se recusar a manter o benefício e você acreditar que tem direito, procure um advogado especializado em Direito do Trabalho. Ele poderá analisar seu caso e tomar as medidas cabíveis, como uma notificação extrajudicial ou o ajuizamento de uma ação trabalhista.
Para o Empregador:
- Analise os instrumentos coletivos: Antes de tomar qualquer decisão, verifique se a CCT ou ACT da categoria prevê a concessão do benefício e se há alguma cláusula específica sobre home office.
- Evite alterações unilaterais: A supressão de um benefício já concedido pode gerar passivos trabalhistas.
- Comunique-se de forma transparente: Qualquer alteração nas condições de trabalho deve ser comunicada de forma clara e, preferencialmente, acordada com o empregado via aditivo contratual, respeitando as leis e negociações coletivas.
- Considere o custo-benefício: Manter o benefício pode contribuir para a satisfação e produtividade dos colaboradores em home office, além de evitar litígios.
Conclusão
A transição para o home office não pode ser um pretexto para a supressão indevida de direitos do trabalhador. No que tange ao vale-alimentação e vale-refeição, a regra geral, especialmente considerando a jurisprudência, é pela sua manutenção. A menos que haja uma previsão clara em acordo ou convenção coletiva permitindo o corte, ou que se comprove que o benefício era uma mera liberalidade sem qualquer caráter salarial e que sua supressão não cause prejuízo, a empresa dificilmente poderá suspender unilateralmente esse auxílio.
Se você é um trabalhador em home office e teve seu vale-alimentação ou vale-refeição cortado, ou se é um empregador com dúvidas sobre como proceder, a melhor estratégia é sempre buscar a orientação de um advogado especializado em Direito do Trabalho. Esse profissional poderá analisar o seu caso específico, a legislação aplicável e os acordos coletivos, garantindo que seus direitos sejam preservados e que a relação de trabalho seja justa para ambas as partes.