O Direito de Família, talvez mais do que qualquer outro ramo jurídico, está em constante evolução para refletir as transformações da sociedade. O conceito tradicional de família, outrora rigidamente definido, expandiu-se para abraçar uma pluralidade de arranjos fundados no afeto. Dentro dessa nova realidade, surge um instituto jurídico de imensa relevância e complexidade: a multiparentalidade.
A multiparentalidade é o reconhecimento legal da coexistência de mais de dois vínculos parentais – por exemplo, um indivíduo possuir, em seu registro civil, uma mãe biológica, um pai biológico e um pai socioafetivo. Essa possibilidade, consolidada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), rompe com a lógica binária da filiação e lança desafios significativos para o Direito Sucessório.
A pergunta torna-se inevitável: se um filho tem três pais (ou duas mães e um pai), como fica a divisão da herança? Esse filho terá “direito a três heranças”? E se o filho falecer primeiro, como seus três pais dividirão os bens deixados por ele?
Como especialistas com profunda experiência na intersecção entre Direito de Família e Planejamento Sucessório, analisaremos neste artigo as regras, os casos reais e as decisões judiciais mais recentes que definem o complexo cenário da herança na multiparentalidade.
O que é Multiparentalidade? O Reconhecimento da Filiação Socioafetiva
Antes de discutir a herança, é crucial entender o fundamento da multiparentalidade. Ela nasce do reconhecimento da filiação socioafetiva – o vínculo de pai ou mãe que não se baseia na biologia, mas na “posse do estado de filho”. Ou seja, é o reconhecimento jurídico daquele que, de fato, cria como filho, exercendo as funções de cuidado, assistência e, principalmente, dando afeto.
Por muito tempo, o Direito exigia uma escolha: ou o vínculo biológico ou o socioafetivo. Isso mudou drasticamente com a histórica decisão do Supremo Tribunal Federal no Tema 622 (Recurso Extraordinário 898.060/SC).
O STF fixou a seguinte tese:
“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.”
Em termos simples: o afeto e a biologia podem coexistir no registro. Um filho não precisa escolher entre o pai que o criou e o pai biológico que descobriu. Ele pode ter ambos. Essa decisão estabeleceu que não há hierarquia entre os tipos de filiação.
O Princípio da Igualdade e a Herança
O pilar do direito sucessório na multiparentalidade é o princípio da igualdade da filiação, cravado no Artigo 227, § 6º, da Constituição Federal, e replicado no Artigo 1.596 do Código Civil: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”
Se a lei e o STF proíbem qualquer hierarquia ou discriminação, a consequência jurídica é direta: o filho com múltiplos pais (ou mães) é herdeiro necessário de todos eles.
Vamos analisar os dois cenários práticos que mais geram dúvidas.
Cenário 1: O Filho Herda de Seus Múltiplos Pais (A “Dupla” Herança)
Este é o cenário mais comum. Se um indivíduo possui, por exemplo, uma mãe e dois pais (um biológico e um socioafetivo) devidamente reconhecidos em seu registro civil, ele participará da sucessão de todos eles.
- Exemplo Prático: João foi registrado pelo pai biológico, mas criado desde tenra idade pelo padrasto, que o reconheceu como filho socioafetivo (seja judicialmente ou em cartório). João passa a ter dois pais em sua certidão.
- A Consequência: Quando o pai biológico falecer, João será seu herdeiro necessário, concorrendo com eventuais outros filhos (meios-irmãos). Posteriormente, quando o pai socioafetivo falecer, João será também herdeiro necessário deste, concorrendo da mesma forma com os filhos do segundo pai.
Sim, na prática, o filho com multiparentalidade terá direito a múltiplas heranças.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já solidificou esse entendimento. Em decisões como o REsp 1.487.596-MG, o tribunal enfatizou que o reconhecimento da filiação socioafetiva produz todos os efeitos jurídicos, inclusive os sucessórios. A existência do vínculo biológico não pode, jamais, ser usada para excluir ou diminuir os direitos sucessórios decorrentes do vínculo de afeto.
Cenário 2: Os Múltiplos Pais Herdam do Filho (A Sucessão Inversa)
Este é o cenário juridicamente mais complexo e que gerou as decisões judiciais mais recentes e inovadoras. O que acontece se o filho falecer primeiro, sem deixar descendentes (filhos ou netos) nem cônjuge/companheiro?
Pela regra do Artigo 1.829, II, do Código Civil, a herança é destinada aos ascendentes (os pais).
Aqui, o sistema tradicional de sucessão entra em colapso. O Código Civil (Art. 1.836, § 1º) prevê uma divisão da herança “por linhas” – 50% para a linha materna (mãe) e 50% para a linha paterna (pai). Mas como aplicar essa regra se o filho deixou, por exemplo, uma mãe e dois pais?
- A divisão “por linhas” tradicional daria 50% para a mãe e 50% para ser dividido entre os dois pais (25% para cada)?
- Ou a divisão deveria ser igualitária “por cabeça” (por pessoa), dando 1/3 para cada um dos três genitores?
Essa questão exata foi resolvida recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em uma decisão paradigmática.
A Decisão Recente do STJ: O Caso do Filho com Três Pais (REsp 2.096.331-DF)
Em 2024, a Terceira Turma do STJ julgou um caso real exatamente nestes moldes: um filho que possuía uma mãe (biológica) e dois pais (um biológico e um socioafetivo) faleceu sem deixar filhos ou esposa. A mãe e os dois pais se habilitaram no inventário, e a disputa sobre a forma de partilha se instalou.
O Tribunal de Justiça do DF havia decidido pela divisão “por linhas”, dando 50% à mãe e 25% a cada um dos pais.
Contudo, a Ministra Nancy Andrighi, relatora do caso no STJ (REsp 2.096.331-DF), proferiu um voto revolucionário. Ela entendeu que a regra de divisão “por linhas” do Código Civil foi pensada para a realidade da biparentalidade (um pai, uma mãe) e não se aplica adequadamente aos casos de multiparentalidade.
O STJ decidiu que, neste cenário, a solução que melhor atende ao princípio da igualdade (que proíbe hierarquia entre os pais) é a divisão igualitária “por cabeça”.
Portanto, a decisão determinou que a herança do filho fosse dividida em três partes iguais: 1/3 para a mãe, 1/3 para o pai biológico e 1/3 para o pai socioafetivo.
Esta decisão é um marco, pois estabelece que no caso de sucessão inversa (pais herdando do filho), a existência de múltiplos pais rompe a regra da divisão por linhas, exigindo uma divisão per capita (por pessoa) entre todos os genitores reconhecidos.
Como Regularizar a Multiparentalidade para Fins de Herança?
É fundamental destacar que esses direitos sucessórios não são automáticos se o vínculo não estiver formalizado. A filiação socioafetiva precisa ser reconhecida legalmente. Isso pode ocorrer de duas formas:
- Extrajudicialmente (Em Cartório): Se houver consenso entre todos os envolvidos (pai biológico, pai socioafetivo, mãe e o filho, se maior), o reconhecimento pode ser feito diretamente no Cartório de Registro Civil, conforme as regras dos Provimentos 63 e 83 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
- Judicialmente: Na falta de consenso ou se o reconhecimento for post mortem (após o falecimento), é necessário ingressar com uma Ação de Reconhecimento de Paternidade (ou Maternidade) Socioafetiva. Essa ação pode, inclusive, ser cumulada com a petição de herança dentro do próprio processo de inventário.
A ausência dessa formalização torna o processo de inventário extremamente litigioso, pois os demais herdeiros podem tentar invalidar o vínculo de afeto para impedir a divisão da herança.
Um Novo Paradigma para o Planejamento Sucessório
A multiparentalidade é um fato social que o Direito finalmente abraçou. As decisões do STF e, mais recentemente, do STJ, confirmam que o reconhecimento de múltiplos vínculos parentais gera efeitos jurídicos plenos, complexos e irrestritos, especialmente no campo sucessório.
O afeto, uma vez reconhecido legalmente, gera os mesmos direitos e deveres que o vínculo biológico, e a herança é a consequência patrimonial direta dessa realidade. Estamos vivenciando a construção de uma nova jurisprudência, onde casos reais moldam o futuro do Direito Sucessório.
Navegar por um inventário ou um planejamento patrimonial que envolve a multiparentalidade exige conhecimento técnico profundo e atualizado sobre essas decisões recentes. A complexidade da matéria e o alto grau de litígio exigem assessoria jurídica especializada.
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